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Blog - Ale Toledo

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Yoga No Livro Do Desassossego

O texto a seguir é parte integrante de uma série de quatro reflexões que compõem o projeto "Poéticas da Alma", ação cultural apoiada pela Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), por meio do EDITAL DE CHAMAMENTO PÚBLICO Nº 03/2023 - CONCESSÃO DE BOLSAS - LEI PAULO GUSTAVO  da Superintendência Municipal de Cultura de Pouso Alegre/MG.


A expressão poética nos ensinamentos do yoga


Há muito tempo, venho dedicando inúmeras horas de meus dias imerso na vastidão de uma prática que atravessa minha existência material, subjetiva e simbólica. O yoga, com suas raízes profundamente firmadas na rica e multifacetada cultura indiana (com ramificações também em Kemet, região hoje conhecida como Egito) emerge da tradição védica, que há milênios ilumina reflexões sobre a nossa existência e a relação com o universo manifesto.


A tradição védica baseia-se nos Vedas, um corpo de conhecimento composto por quatro obras: Rigveda, Yajurveda, Samaveda e Atarvaveda. Estes textos constituem o alicerce do vasto sistema de escrituras sagradas do hinduísmo e representam a literatura mais antiga em qualquer língua indo-europeia.


A palavra "Veda", em sânscrito, significa "conhecimento", e neles estão contidos ensinamentos profundos sobre a natureza do universo, da divindade e da alma (atman). As Upanishads, que são uma parte dos Vedas, focam-se particularmente em questões filosóficas e espirituais de grande profundidade, como a natureza da realidade (Brahman) e o propósito da vida, além de oferecerem orientações sobre como viver de forma ética e moral.


Esses ensinamentos foram, e ainda são em algumas linhagens, transmitidos de maneira oral, de guru para discípulo, através de uma tradição conhecida como Guru Shishya Parampara, que pode ser entendida como uma "série ininterrupta de transmissões". Isso significa que esse conhecimento, em sua forma original, era transmitido de um para um, geração após geração, sem perder sua essência e significado.


Ao contemplarmos essa forma de transmissão de conhecimento, podemos nos perguntar: como é possível que essa tradição tenha sobrevivido por milênios sem se perder ou ser esquecida? A resposta talvez resida em uma das formas mais belas e antigas de expressão: a arte.


Os Vedas são compostos por mantras, que são versos metrificados com uma melodia musical característica ao serem entoados. Dessa maneira, o conhecimento é preservado em uma forma de poesia melódica, tornando-o mais fácil de ser memorizado e, consequentemente, transmitido para outras gerações. Ao longo de muitas gerações esse conhecimento foi transmitido de maneira integral, de maneira que aqueles que se iniciavam nesse ensinamento, aprendiam a memorizar os mantras em sua completude. Temos hoje registo de formas melódicas que são ensinadas para recitação de tais mantras.


Outro traço artístico muito marcante nas obras que compõem os textos clássicos do yoga é o extenso uso de uma linguagem poética para expor temas filosóficos e reflexivos. Usando metáforas e analogias, tais textos tentam explicar, através de recursos simbólicos, ensinamentos sobre a vida e a existência. Praticamente todas as tradições se utilizam de mitos e símbolos para explicar conceitos como a gênese do universo, a manifestação do ser humano, a relação com a natureza e com formas divinas.


Por exemplo, a Katha Upanishad refere-se aos nossos sentidos como sendo cavalos atados em uma carroça, sobre os quais devemos aprender a ter um certo comando:


"Conhece-se que o corpo é a carruagem,

o atman (alma) é o mestre da carruagem,

a mente é a rédea,

os sentidos são os cavalos,

os objetos dos sentidos são os caminhos.

Os sábios dizem que o atman (alma)

unido à mente e aos sentidos

é o desfrutador."

 

A expressão yogi nos textos poéticos


Assim como há muita poesia no yoga, há também muito yoga nas diferentes formas de poesia. Aqui vale refletirmos um pouco mais a fundo sobro o próprio termo “yoga” para que fique mais coerente sua apreensão nas outras formas de expressão artísticas.


O imaginário do senso comum coloca o yoga no campo das técnicas corporais, respiratórias e meditativas, ou seja, nessa visão, fazer yoga significa realizar uma prática que implica em cumprir alguma dessas técnicas ou todas elas. Essa visão limita o yoga a um momento, uma hora específica do dia na qual a pessoa irá dedicar-se à prática. Em seu livro “O Coração do Yoga”, T.K.V. Desikachar diz que “o objetivo do yoga é reduzir a névoa de avidya (ignorância) para que possamos agir corretamente” ¹. Através de ensinamentos profundos sobre a mente e sobre o Ser, o caminho do yoga é um meio que propõe uma conexão profunda com a vida e com tudo o que existe.


O yoga não se limita à experiência, mas à consciência do saber da experiência. Jorge Larrosa² nos lembra que as experiências são cada vez mais velozes. Tudo ocorre com uma velocidade sintética, que não respeita o tempo orgânico dos nossos processos naturais, e consequentemente os estímulos se reduzem a instantes fugazes rapidamente substituídos por novos estímulos. Na contramão dessa efemeridade, o yoga é um convite ao desacelerar, a caminhar a passos lentos, a mergulhar nas experiências permitindo a elas o tempo necessário para sua expressão.


Esse também é o convite da poesia. Não é possível se relacionar com a poesia a toque de caixa, de maneira rápida e desatenta. A poesia é um convite ao mergulho nas sensações. Seu significado quase nunca está na superfície, mas sim nas nossas entranhas. É no fundo de nós que a poesia penetra e se desdobra. Relacionar-se com a poesia, então, é relacionar-se com o tempo. É uma pena que muitos de nós tenhamos tido o desprazer de aprender poesia de uma forma utilitarista nas aulas de literatura. Tínhamos que aprender poesia porque caia na prova, ou porque era cobrado no vestibular. Para grande parte, isso empobreceu o encanto.


Me vejo novamente encantado ao perceber que aquilo que faz meu coração vibra (o yoga) sempre esteve expresso nas entrelinhas daquilo que lia de forma mecânica para os estudos. E fico feliz em poder traçar alguns paralelos entre yoga e poesia nesse projeto.


O yoga se expressa na poesia também através de um profundo olhar para a realidade, seja ela material ou subjetiva. Realidade são é apenas aquilo que podemos ver, sentir, tocar. Realidade é um campo de percepções e experimentações. Ao decorrer dos anos, os yogis foram aqueles que conseguiram observar e se relacionar de uma maneira muito intensa com todas as formas e expressões de vida. Davi Kopenawa³ nos ensina que árvores, rios, montanhas, não são matéria inerte, são parentes. É possível aprender com as águas dos rios, com o soprar dos ventos. As montanhas mostram seu humor e dizem se fará tempo bom ou não. Esse olhar sensível é o cerne da poesia. O ato poético é sensibilizar-se e expressar essa experiência sensível. Quando Manoel de Barros diz que seu quintal é maior que o mundo, ele reconhece ali a infinitude da sensibilidade humana, expressa na magnitude dos astros e na miudeza menor formiga que carrega uma folhinha.


A poesia, assim como o yoga, nos convida à uma jornada interior de sensações e reflexões e é nessa viagem que partiremos de mãos dadas com Fernando Pessoa e sem Livro do Desassossego.


O Yoga do Desassossego


Por mais de um século, a obra de Fernando Pessoa tem cativado leitores com suas complexas explorações da psique humana. O "Livro do Desassossego" é, sem dúvida, uma das mais intrigantes contribuições do autor português à literatura mundial, destacando-se como um diário fragmentado e introspectivo que se desenrola através das reflexões do semi-heterônimo Bernardo Soares.



Publicada postumamente e composta por uma coleção de textos dispersos que Pessoa escreveu ao longo de décadas, esta obra é um mosaico de pensamentos, sentimentos e observações que revelam a intricada teia da mente do autor. O caráter fragmentário do "Livro do Desassossego" reflete não apenas a natureza do processo criativo de Pessoa, mas também a fragmentação inerente à experiência humana.


Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros que serve como narrador, é uma figura que personifica muitas das inquietações e ansiedades do próprio Pessoa. Soares não é um personagem com uma história linear ou desenvolvimentos claros, mas sim um veículo para as meditações filosóficas e existenciais. Através dele, o autor mergulha em uma profunda investigação de si mesmo, questionando a natureza da identidade, do sentido e da realidade.


A linguagem do livro é ao mesmo tempo bela e melancólica, repleta de paradoxos e contradições que espelham as próprias dualidades da alma humana e expressa uma sensação de desassossego constante, uma inquietação que vem da percepção aguda da impermanência e da incerteza da vida.


O "Livro do Desassossego" é uma obra-prima da literatura introspectiva, um testemunho da genialidade de Fernando Pessoa e de sua capacidade única de capturar a complexidade da alma humana. Através das palavras de Bernardo Soares, somos lembrados de que, embora possamos estar sozinhos em nossas jornadas internas, estamos unidos na nossa busca pelo significado e compreensão.


Temos então um terreno fértil para as aproximações com o caminho do yoga. Uma das obras mais clássicas nesse campo é o Yoga Sutra de Patanjali [4] que é um tradado datado de cerca de 200 EC que propõe uma investigação minuciosa da mente humana e suas implicações na vida prática.  O "Yoga Sutra de Patanjali" é uma obra clássica que transcende fronteiras e eras, oferecendo uma análise meticulosa e atemporal da mente humana. Este tratado é um dos textos fundamentais do yoga, que sistematiza e codifica as práticas e filosofias da disciplina.


Uma das contribuições mais significativas do "Yoga Sutra" é a sua análise dos Kleshas, ou aflições, que incluem ignorância, egoísmo, desejo, aversão e apego e como elas afetam a vida humana. Tais aflições aparecem na experiência de Bernardo de Campos em sua observação da vida e de seus sentimentos.

 

Análise dos trechos

Trecho 4:

“E do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.
Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que devera humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço.
A glória nocturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido... E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento do mundo.”

Começamos as aproximações com o trecho de número 4, no qual o autor traz um claro contraste entre a magnitude da grandeza de seus sonhos e sua aparente insignificância como guarda livros em Lisboa, expondo que essa aparente contradição o liberta ao invés de esmagá-lo.


Um dos temas centrais do yoga é o conceito de liberdade, chamado de Moksha. Ela diz respeito à uma liberdade do ponto de vista existencial, ou seja, libertar-se da ideia limitada do que pensamos que somos. Em outras palavras, ao longo da vida vamos assumindo papeis que constituem nossa identidade: filhos, mães, pais, professores, médicas, estudantes, atendentes, guardadores de livros e todo o tipo de classificação que possamos pensar. Tais papel, no entanto, são apenas desempenhados por nós e não são inerentes à nossa essência. Liberdade é não se condicionar a nenhum papel, ainda que ele seja desempenhado por você. Usando uma analogia, é como um ator que interpreta um personagem em uma peça de teatro, mas não esquece que ele não o personagem em si, mas sim o ator que o interpreta.


Socialmente, um guardador de livros pode não ser reconhecido com grande prestígio, mas isso é apenas um papel. Para além dele, há a majestade do Ser, o reconhecimento de ser grande (a beleza magnânima do seu eu interior) não sendo nada (aos olhos de quem enxerga apenas o papel que é interpretado). É talvez essa compreensão profunda de si que faz com que o autor se sinta como um monge no ermo, recolhido na profundeza de seu ser.

 

Trecho 6:

“... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que esquecido estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui eu assim!…”

Nesse fragmento há um trecho que acho muito interessante: assisto-me com sono. É interessante notar de forma explicita a vida sendo assistida pela própria vida. Há uma entidade que, ao mesmo tempo está presente na experiência e é capaz de observar e saber da experiência. Parece simples, mas existe uma camada mais profunda nessa percepção.


Quantas são as vezes nas quais nós nos pegamos fazendo coisas de forma meramente automática. As atividades vão se desenrolando de uma maneira mecânica e quando nos damos conta, as vezes nem lembramos a forma exata como as executamos. Veja isso agora, você pode estar lendo essas linhas, mas você está percebendo que as lê enquanto lê? Você pode continuar lendo, mas agora você coloca mais uma camada de percepção, ou seja, você lê e, ao mesmo tempo, você também percebe conscientemente que está lendo. Pronto, essa é a vida assistida pela própria vida.


Quando Bernardo de Campos diz que se assiste com sono, ele se coloca no lugar do observador da experiência. A isso, Patanjali irá definir como Drashutuh, que podemos traduzir de maneira simples como “observador”. Este é a testemunha das experiências, sejam elas quais forem.


Para Patanjali, uma das metas do yoga é fazer com que o observador repouse em sua própria natureza, livre das identificações com os conteúdos da mente. No sutra 3 do primeiro capítulo encontramos:


तदा द्रष्टुः स्वरूपेऽवस्थानम्

tadā draṣṭuḥ svarūpe’vasthānam

Então, o observador (drashtuh) repousa em sua verdadeira natureza.


Para esse texto do yoga, Drastuh tem uma característica ontológica, pois é tido como a própria consciência presente no indivíduo e que está presente invariavelmente em todas as experiências saboreadas ao longo de sua existência. Muitos dos relatos ao longo do Livro do Desassossego parecem vir desse lugar: a vida assistida pela própria vida.

 

Trecho 7:

“Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem dignidade que constituem grande parte da substância espiritual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato. Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me houvessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual do meu ser.
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o como se o dissesse, circunstaciadamente: teria pena. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem chorar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me deles era uma metade e semelhança da morte...”

O que é a vida senão uma trama de histórias que se cruzam e que vão se constituindo em apoio mútuo? Sou o que sou porque existo em relação. Não me constituo apenas a partir de mim mesmo, mas também nas relações que me compõe e que são compostas por mim. Por exemplo, eu falo português e como arroz e feijão porque nasci no Brasil, essa cultura me atravessa e me constitui, ao mesmo tempo que eu, pensante enquanto brasileiro, ajudo a construir uma rede cultural, reforçando padrões ou ressignificando (e reinventando) alguns deles.


O mesmo é válido para nossas relações, sejam elas afetivas ou profissionais, todas elas, em uma certa medida, nos compõem e são compostas por nós.  No contexto da obra, o trecho selecionado revela um profundo sentimento de interdependência e a conexão do eu com o ambiente e as pessoas ao seu redor.


Essa reflexão literária pode ser relacionada ao ensinamento sobre "Pratītyasamutpāda", ou a Originação Dependente. Esse é um conceito budista, que também influencia o pensamento do yoga, que postula que todas as coisas e seres estão intrinsecamente ligados e dependem uns dos outros. Assim como o narrador se vê incapaz de se desvencilhar totalmente das pessoas e elementos que compõem seu cotidiano, Pratītyasamutpāda revela que nossas vidas e identidades são entrelaçadas com nosso entorno e com aqueles que fazem parte da nossa jornada.


Essa percepção pode nos levar a uma compreensão mais profunda de nossa posição no mundo, promovendo um sentimento de compaixão e solidariedade, ao reconhecermos que nossa existência está inevitavelmente conectada à de todos ao nosso redor.


Trecho 15

“Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano que me quedara nulo.
Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.”

Tenho tido um interesse particular em pensar sobre a natureza livre daquilo que somos. Escrevi recentemente sobre a qualidade interior que nos é inerente ao nascer, pois nascemos livres de qualquer amarra e vamos aos poucos aprendendo a caber em conceitos e delimitações.


É engraçado que grande parte da vida adulta, quando vivida com um olhar para o autoconhecimento, seja para desfazer padrões e narrativas que nos fizeram caber em uma forma limitada de existência. Vejo em mim as mudanças influenciadas por práticas de sensibilização como as propostas pelo yoga. Mudei a relação com meu próprio corpo. Refleti e ressignifiquei padrões de comportamento. A forma como me relaciono se transformou. E esse processo ainda me atravessa e me modifica. Abandono muito do que acreditei ser o padrão para adentrar em um espaço de expressão mais autêntica de mim mesmo. Mas ainda me vejo cheio de travas, de medos, de receios e confusões. Nesse sentido, me aproximo do trecho acima, pois me vejo conquistando, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.

Há uma frase que diz:

Ayam ātma Brahman

Este Ātma é Brahman

 

Esse trecho aparece em um texto chamado Bṛhadāraṇyakopaniṣad e fala sobre a natureza ilimitada daquilo que somos. Ātma é a uma palavra que é utilizada para designar aquilo que somos enquanto consciência, um sinônimo de Drashtuh citado anteriormente. Não é algo que se conquista por qualquer tipo de esforço, mas a essência daquilo que somos, esse “terreno interior”. Brahman é a consciência ilimitada, que é a essência de toda a manifestação. O yoga nos ensina que o processo de autorrealização não acontece através de encontrar algo que esteja separado de si, mas sim pelo reconhecimento na natureza essencial que já é.  Ou seja, mais uma vez, a frase do texto se relaciona intimamente com a sabedoria do yoga, que nos faz reconhecer esse terreno interno que é nasce nosso.


Trecho 25

“Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma.”

Definir alma e consciência tem sido uma tarefa de milhares de anos em muitas tradições espirituais e filosóficas. Muitos sãos os textos e ensinamentos que apontam para uma forma de enxergar esses conceitos não apenas de um ponto de vista meramente intelectual, mas sobretudo vivencial e suas implicações na vida prática das pessoas.


A Bhagavad-Gita, um texto que narra a conversa entre Krishna (representação da divindade suprema) e Arjuna (um guerreiro prestes a lutar em um campo de batalhas) traz algumas reflexões sobre o que seria a consciência.


No verso 2.20 Krishna diz:

Este [Ser] não nasceu nem jamais morrerá; não tendo vindo-a-ser, tampouco deixará-de-ser novamente. Este [Ser] não nascido, eterno, perene, primordial, não morre quando morre o corpo.


A instrução de Krishna sugere Ātma, o Ser, como sendo uma entidade que da vida ao corpo, mas que não se limita ao corpo, ou seja, quando esse morro, o Ser continua. Esse é o aviso inevitável da consciência, uma vida que se expressa animando o corpo e estando presente nas experiências. Enxergar a vida em outro alguém não é ver apenas seu corpo e físico atuando, mas a sutil presença a alma que é testemunha de tudo o que acontece no palco das sensações.


Talvez esse seja um olhar de reconhecimento. A possibilidade de ver como somos diversos em nossas expressões de vida, mas que, no fundo dos olhos, há uma essência que nos iguala.



Trecho 68

“O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes — brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias — que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem das suas secreções.”

O trecho acima fala sobre ilusões, termo que na tradição do yoga muitas vezes é traduzido como Māyā. Māyā é tida como a ilusão, mas esse termo é muito abrangente e genérico, passível de diversas interpretações.


Em sua tradução da Bhagavad Gita, um texto muito importante na tradição do yoga, o pesquisador Georg Feuerstein traz uma nota de rodapé sobre a passagem 4.6 na qual o termo Māyā aparece. Nesse trecho a palavra aparece denotando a natureza divina pela qual o universo se manifesta, ou seja, é a própria natureza da criação. Ainda no trecho 7.14 o autor traduz novamente o termo Māyā como “potência criativa”, denotando mais uma vez essa ideia de que a manifestação do universo acontece por essa potência criativa.


Maya se refere à ilusão que envolve o mundo sensorial e mental, obscurecendo a natureza da realidade. Segundo a filosofia do yoga, a vida que percebemos através dos sentidos é distorcida, composta por ilusões que nos afastam da essência divina e da unidade. Essa ilusão nos leva a confundir o transitório com o permanente, o superficial com o profundo, resultando em ciclos de sofrimento e ignorância.


O trecho acima oferece uma profunda reflexão sobre essa temática, apresentando uma análise poética e intelectual do "cansaço de todas as ilusões". Pessoa descreve um sentimento de fadiga diante das ilusões e, ao mesmo tempo, a inevitabilidade de se submeter a elas, mesmo sabendo que resultariam em desapontamento.


"O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las..."


Esse "cansaço" é a exaustão de quem vive preso na maya, a ilusão incessante que nos faz criar expectativas e apegos. Tal como o yogi busca ir além das ilusões, reconhecendo que elas são temporárias e aparentes, o autor reflete sobre o desgaste emocional e intelectual ao perceber que a vida, como a compreendemos, é construída sobre percepções ilusórias.

Fernando Pessoa vai além ao afirmar a "consciência da inconsciência da vida". Parece que para ele, esse ciclo de ilusões não é meramente um fato humano, mas também parte de um automatismo, semelhante às funções involuntárias do corpo. Esse aspecto reflete a visão yogue de que a mente, quando opera de forma automática, age como um reflexo condicionado, criando realidades que nos enganam e nos mantêm presos ao sofrimento.

"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência."


Aqui, Pessoa se aproxima da ideia de que a ignorância (avidya) é a raiz do sofrimento, uma ideia central na filosofia yogue, apresentada no Yoga Sutra de Patanjali. A percepção de que somos inconscientes da verdadeira natureza da existência, e que, em última instância, estamos operando em maya, é o fardo que a inteligência carrega.


Daria para ficar fazendo análise do livro todo, mas já se foram muitas linhas e reflexões e fico por aqui!


Assim como a poesia e o yoga se entrelaçam nas profundezas de nosso ser, nossa jornada interior desvela paisagens de liberdade e interdependência, onde cada experiência vivida é uma peça da grande tapeçaria da existência. Nessa dança entre o finito e o infinito, entre o silêncio e a palavra, somos convidados a explorar o vasto terreno de nosso próprio coração, reconhecendo que o caminho é tanto um retorno quanto uma descoberta. Ao final, somos levados a entender que a verdadeira conquista não é um destino fixo, mas um constante fluir de sensações e significados, onde o Ser se revela e se recria. É nesse espaço poético e sutil que o yoga nos ensina a contemplar a vida com a sensibilidade de um verso profundo, um sopro essencial.



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